sábado, 8 de dezembro de 2007

DEUS EX MACHINA

Acreditar em deus é muito difícil. Não acreditar é mais difícil ainda. Para os criacionistas toda a criação e toda a origem do Universo se deu como está na Bíblia. Deus fez tudo e pronto. É tão simples: Deus ex machina. E tome um fabulário imenso de histórias inverossímeis e contraditórias que há milênios os credos ocidentais vendem como verdadeiras. Se você não acreditar vai para o inferno. Na Bíblia deus tem muitas faces. Algumas vezes é aquele ser bondoso que faz chover maná no deserto para salvar seu povo da fome (na Bíblia deus tem um povo, os outros povos não são de deus, ou são de algum deus canhoto e com prazo de validade vencido). Ou , então, é aquele ser cruel e assassino que manda Abraão, seu representante (um dos) na Terra sacrificar seu filho Isaac e depois volta atrás . Era um teste. Como fazem os diretores de recursos humanos nas sessões de treinamento. O deus bíblico tem, também, crises de genocida quando convocou o Dilúvio para acabar de vez com o povo que ele mesmo criou e que andava prevaricando além da conta. Seria tudo muito desencontrado se alguns filósofos de plantão não filtrassem todos essas histórias dando-lhes consistência e foros de verdade para o entendimento das classes mais eruditas. O povão sempre teve que aceitar essas “verdades” do jeito que lhes chegassem aos ouvidos. Sem muita prosopopéia.

Aqui no ocidente uma das idéias de deus e seu séqüito de anjos e santos causou muitos estragos e polêmicas até que o furor dos togados se amoldasse aos padrões de liberdades que se formaram pela via das revoluções políticas e permitissem que cada um escolhesse a forma de deus que melhor lhes conviesse. Hoje temos o deus católico, o deus protestante, o deu umbandista, o deus do Edyr Macedo e da bispa Sônia, o deus tupi-guarani e o “ái meu deus” do povo que muita alma pacificadora diz ser sempre o mesmo em embalagens diferentes.

A maior pendenga religiosa dos nossos dias vem de saber quem criou o Universo e todo o trem de artefatos que ele contém. Ou se ele criou a si próprio. Duas anedotas resumem com certo humor essa pertinaz polêmica. .

Os evolucionistas argumentam que para um deus tão grande e poderoso é um desprestígio levar tanto tempo na obra da criação. E olha que forom bilhões de anos desde o Big Bang para que aquela primal poeira de estrelas resultasse na obra prima da natureza que somos nós - em extensão a humanidade - tão cheios de graça e de imperfeições. Tanto tempo para esse pífio resultado. Ou alguém pode imaginar que no conjunto somos seres definitivos e acabados? É só ler as manchetes do dia para ter certeza que não.

A revanche dos criacionistas vem da ingenuidade de se acreditar que a evolução seria como se um vendaval soprasse sobre um vasto monturo de ferro velho e uma vez amainada a procela, as peças tivessem se juntado de forma harmônica e produzido algo com um Boing reluzente e maravilhoso prontinho para levantar vôo. E que, enfim, voasse

Duvidar da existência de deus tem seus terrenos percalços. Mesmo sendo um incréu de meia pataca como eu. Lembro-me de um remoto entrevero que tive numa aula de religião com um padre que depois se tornou bispo de Bauru. Discursava ele sobre as teorias para se provar a existência de deus, quando na a hora errada e no lugar errado tive a bestificante idéia de perguntar (oh santa ingenuidade!) porque em vez de toda essa ginástica mental, “esse” deus miraculoso de que falava não aparecia com todos seus poderes ali na cátedra e resolvia a questão com sua espada flamejante. Simples, caro Watson. A resposta veio espumante, vociferante e tonitruante : “ora, rapaz, não vem assim como você imagina, porque Ele não quer!!!”. Este Ele tem que ser com maiúscula, tal a indignação do padre . Claro que num átimo percebi a insensatez da pergunta. Temendo conseqüências maiores a classe fez um silêncio sepulcral que ouço até hoje. O futuro bispo decidiu por deus naquele momento. Ele não quer, ora bolas Isso é a religião. Os homens falhos e mal acabados sempre querendo falar por deus.

Surpresa foi minha petulância não ter gerado nenhuma repercussão adversa. Ou teria sido esse um milagre de deus? Acabei professor dessa mesma faculdade que naquele dia patrocinava o curso de religião. Em outra ocasião perguntei ao Amin – sim, o nosso Amin que nunca quis ser bispo - se ele achava que o papa (do Vaticano) acreditava em deus. Estávamos na Cidade do México, em périplo educativo, e diante de um “quiosco de periódicos” que anunciavam a inacreditável morte repentina do papa João Paulo I, eleito 20 dias antes. Afinal os papas são homens sábios e ardilosos. E ele me retrucou de maneira também sábia e não menos ardilosa: “E você acha que o , Papa Jr (do Senac) , acredita em formação profissional?”. Pois é: não sei.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

CASTRO ALVES

Castro Alves era um show. Bonito, bem vestido, pintoso, articulado, viril, cabeleira basta e, suprema glória para sua época - poeta. Um verdadeiro pop-star. Aos 13 anos escreveu e declamou seus primeiros versos no colégio em que estudava. Foi um menino prodígio e prodígio em toda sua breve vida. Morreu aos 24 anos vítima da tuberculose e de uma gangrena no pé, motivada por um tiro de chumbos disparado acidentalmente por ele mesmo, quando caçava. Tentou formar-se advogado no Recife e em São Paulo, as duas únicas faculdades de direito que havia, então, no Brasil.. Não tinha vocação para mais nada que não fosse ser poeta. Escrevia e dizia versos da melhor qualidade, até de improviso, como fazem, hohe, os repentistas. Não raro levantava-se de sua poltrona nos teatros e compunha belas odes em louvor às mulheres que via no palco. Ou às causas que defendia, sobretudo a libertação dos escravos.

Apaixonou-se por uma atriz famosa aos 16 anos e tornou-se seu amante: a portuguesa Eugênia Câmara, dez anos mais velha que ele e de pouca beleza. Mas sedutora, claro. Morou com ela no Recife, em Salvador, no Rio e em São Paulo, onde brigaram definitivamente. Foi morar em uma república de estudantes tendo Ruy Barbosa, como companheiro de quarto – dois baianos de vibrante inteligência. Era republicano e abolicionista ferrenho. Corajoso declamava poesias contra a escravidão para a elite paulista que enriquecia com o braço escravo. Um verdadeiro acinte. Imune a represálias pelo seu talento e magnetismo pessoal.

Onde quer que se apresentasse em publico, brilhava como um astro de intensa luminosidade. Ou como um herói romântico. Sem os recursos da tecnologia dos nossos dias, se valia do tinha como pessoa para brilhar: seu flamejante talento e cultura precoce. O povo, no recesso de um teatro ou numa praça pública (“a praça é do povo, como ´céu é do condor”, disse ele inflamado) delirava diante de seu porte altivo, sempre vestido de negro, como para acentuar a palidez do seu rosto – era moda ser pálido na sua época – que às vezes ele reforçava com pó de arroz e carmim nos lábios. Dizia seus versos patrióticos com voz alta e vibrante, assemelhando-se aos deuses, na avaliação de Ruy Barbosa que o sobreviveu por longos anos e que tinha talento semelhante , mas não a presença magnífica do poeta. Castro Alves foi a verdadeira encarnação de um herói vivo. Era seguido por um séqüito de admiradores que o carregava nos ombros e por mulheres apaixonadas. A muitas amou no arroubo de suas poesias e no fogo de suas paixões.

Nunca levou adiante um trabalho regular. Escrevia esporadicamente para jornais e publicou em vida apenas um livro. Nem gostava de estudar. Passava de ano nos cursos que freqüentava apenas com seu talento e sua loquacidade. . Viveu sempre das mesadas de seu pai médico e de sua madrasta que, ironicamente, enriquecera com o tráfico dos escravos que ele queria libertar.

Viveu sua breve vida como se fosse um vendaval maravilhoso. Queria libertar os escravos com o canhão dos seus versos e com eles proclamar a república brasileira. Não conseguiu, como sabemos. Mas plantou as sementes fecundas desses ideais com rimas que tinham a força de um exército. Foi chamado “o poeta dos escravos”. Castro Alves plasmou no imaginário popular a efígie dos poetas na figura de como um rapaz magro, de basta cabeleira ondulada, rosto pálido, olhos brilhantes, voz sonora, mãos largas e gestos amplos. Assim como foi ele mesmo, foi Antonio Frederico de Castro Alves, um poeta. E mais que isso um herói do povo no seu tempo e quem sabe de todos os tempos, neste Brasil de heróis tão vagos.

sábado, 22 de setembro de 2007

O CÃO E SEUS CONTRÁRIOS


Gosto de escrever sobre os cães. Mais que escrever gosto deles. Tanto gosto que queria ser um. São seres excepcionais. Não há entre os irracionais quem se iguale a eles. E olhem lá que podemos incluir nesse conceito muitos de nós mesmos – os racionais. Os cães possuem todas as ferramentas de uma fera. Pouco diferem de um leão ou de um tigre na capacidade de agredir e matar. Se duvidarem ponham a mão na boca de um deles, num momento de mau humor e sem antes construir um pequeno lastro de amizade. Como todos nós humanos eles selecionam com quem querem ser dóceis e a quem aplicarão suas capacidades ancestrais de defesa e agressividade. Com a diferença que se entregam incondicionalmente a quem defendem e agridem sem a menor premeditação. Sabem a força que têm e a usam na medida exata de seus deveres de fidelidade e obediência.

Os cães, entretanto, carregam consigo contrários abissais. Para alguns são anjos, para outros demônios. Tal e qual Gabriel e Lúcifer fundidos numa mesma entidade. No pitoresco linguajar nordestino “cão” é sinônimo de Demônio enquanto que pode ser também o símbolo angelical da fidelidade.

Quer exemplo melhor do que duas posturas antagônicas lavradas pelas figuras nacionais de Waldick Soriano e Rogério Magri? –
Aquele ministro do Collor, lembram-se - O primeiro todos conhecem por ser um cantor popular, ainda que meio esquecido hoje em dia. O segundo, só para lembrar, foi um controvertido Ministro do Trabalho que ganhou fama pelas presepadas que aprontou deixando um rastilho de anedotas e cafés no seu curto mandato.

Pois bem, o Wandick, em uma de suas mais populares canções diz que “não quer ser cachorro, não”. Não quer ser tratado por sua amada como um vira-latas qualquer. E com isso lança nos seus versos a pior das idéias que se pode impingir a esse animal tão cheio de virtudes. O cachorro de Wandick é aquele ser abjeto de magreza impar, sarnento e pulguento, abandonado e escorraçado pelas ruas onde perambula em busca de um naco de comida para saciar sua fome. Infelizmente esse cão também existe vitimado, justamente, por aqueles que ele quer defender e que os abandona covardemente. Wandick não quer ser esse cachorro, não.

No outro extremo dessa corrente de tantos elos na maneira de avaliar o melhor e muitas vezes o mais sofrido dos amigos do homem, está o ex-ministro Rogério Magri forjador de tantas anedotas involuntárias. Ao ser flagrado por jornalistas levando indevidamente seu cachorro ao veterinário no carro oficial do ministério que presidia aos trancos e barrancos, e advertido de que o carrão era para transportar autoridades como ele, saiu-se com esta: “mas cachorro também é gente”. E foi bater direto no conceito do cão que é o mais especial dos animais de quem falamos. Para aquele homem de idéias curtas e, certamente, de coração largo, o cão é tão humano nas suas virtudes que chega a ser gente. Sem tirar nem por.

Eu não tenho nada contra e nem reclamaria dos impostos que paguei e que certamente ajudaram a pagar a gasolina daquele périplo do Sr. Ministro a caminho do veterinário. Acho que a despesa foi bem aplicada. Melhor e infinitamente menor de quando transporta políticos corruptos com suas sacolas de dinheiro subtraídas daqueles “humanos” que morrem desassistidos nos corredores dos hospitais do governo. Fiquemos tranqüilos porque não há cão corrupto. E se algum mal podem fazer inconscientemente é por culpa de seus donos que não souberam tê-los como companheiros.Os cães são simples como anjos. Ingênuos como os néscios. Fieis como só eles mesmos. Sem comparação.

Esta crônica eu dedico ao Black, Fany, Raja (na foto) Toby,Lana, Flicka, Rick, Rey (Reymond) e Flicka - esta última exilada em outras paragens porque disputava, literalmente, com unhas e dentes a prioridade em ficar a meu lado. Ciumenta como como um Otelo de rabo..

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

CORRESPONDENCIA ATIVA E PASSIVA



CARO JOAQUIM
Quando chove na madrugada e o céu amanhece nublado, baixa uma tristeza infinita aqui na chácara que inunda meu coração. Subo a pequena rampa que leva ao portão de entrada, seguido pelo atropelo dos cães e tenho vontade de chorar. Às vezes choro sentado num monturo de grama. As lágrimas são um bom analgésico e não têm tarja preta. Nem contra-indicação. Os cães parecem perceber meu desalento e silenciam à minha volta. Lambem minha mão como se fosse um abraço. Outros apenas olham sem entender o mistério da alma humana. Ou compreendem no seu silêncio. Depois me convocam a uma reação. Começam a correr e olhar como se me chamassem. Volto com eles e a vida continua.
Fico pensando nas coisas que fiz e nas coisas que deixei de fazer. Aquelas que fiz bem e aquelas que fiz mal. O saldo negativo sempre é maior. Não diria, como os falsos otimistas, que se nascesse de novo fariam tudo, outra vez, do mesmo jeito. Não, não faria. Não me arrependo do que fiz, porque o arrependimento é uma tolice. Não corrige nada. A vida é como a roleta: o jogo que foi feito, feito está. E se pudesse refazer alguma coisa, não sei como faria. Não sei onde erraria de novo nem onde corrigiria o que fiz de errado. Uma vida não se corrige. O corrupiê nunca volta atrás.
Sua carta, Joaquim, muito me entristeceu. Não só por você, mas pelo muito que nela me refleti. Você lamenta tantas coisas e percebo que também tenho os mesmos enredos a lamentar. Na balança da vida você teria mais motivos que eu para se alegrar. Uma família com filhos e netos. Uma carreira brilhante de professor. Um título de cidadão honorário que é o reconhecimento das fagulhas de seu amor divididas com seus alunos, pais de alunos e concidadãos desde que chegou á cidade de Guará que adotou como sua. A cidade foi reconhecida pelos anos de labuta que a ela dedicou. Quer melhor homenagem que o apodo de “professor saudade” que lhe foi outorgado pelos seus alunos ? Creio que tenho um quinhão nessas saudades pelo muito que vivemos juntos em nossos tempos de estudantes em Bauru e nossas tíbias aventuras de mocidade, inclusive, a temeridade de subir a um palco para representar autores famosos nos nossos arroubos de teatro estudantil. Até que fizemos sucesso, não fizemos? “Os Cegos” do Ghelderode, lembra-se?
Divago e volto a pensar na felicidade. Será que a parcela de infelicidade que experimentos hoje são os juros que deixamos de pagar pelos saldos de felicidades de ontem? Será que há um preço a pagar pelas alegrias que vivemos despretensiosamente? Ou será tudo culpa da idade que nos assalta como um malfeitor a nos golpear na calada da noite? Sei que passarei por este mundo sem compreender muita coisa. Até mesmo certas coisas que o conhecimento explica e o meu entendimento, muitas vezes não alcança.
Fico feliz (olha aí a felicidade que também nos assalta por algum flanco inesperado) por saber que você guarda de mim as mesmas lembranças que guardo de você. Lembranças hilárias, na maioria das vezes, que se transformaram em chistes que hoje contamos como se fossem piadas. Pelo menos para nós o foram, sob muitos aspectos. Também vivemos na lembrança dos amigos, como morremos no esquecimento deles mesmo. Neste instante me lembro de um filme de suspense e mistério que vimos há muitos anos no velho e hoje inexistente Cine Bauru e cuja charada do enredo você matou antes do desfecho final. Lembra-se? “As Diabólicas” do Henry-Geoges Clouzot.
Alguns minutos – e minutos num filme de mistério é uma eternidade – antes que o mistério se revelasse você deu um salto na poltrona e gritou: “matei, matei a charada”. Claro que não privou os espectadores vizinhos do prazer da revelação do enigma, mas seu “achado” foi o comentário daquela noite. Estou lhe enviando o filme para que lembremos juntos esse naco de saudades. Isso não nos tornará nem mais nem menos felizes. Mas poderá ser uma boa e saudosa memória. Mesmo porque a felicidade é como está inscrita na última cena de “Édipo Rei”: - “ninguém pode se considerar feliz antes que o pano baixe sobre o espetáculo de nossas vidas”.
Um grande abraço.
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PREZADO AMIGO,
Juvenal, meu único e verdadeiro amigo. Tive, em toda a minha vida de 71 anos, dois amigos: o Bodé e você. O Bodé foi toda a memória da minha tão solitária infância. Preencheu a falta de carinho, de companhia, de família, de uma meninice vazia de amor. Você foi o irmão que não tive, a compreensão que me faltou, e companheiro de toda minha juventude e a presença sempre constante ontem, hoje, agora e sempre. Quanto de minha atribulada história está no arquivo de sua memória? Quantos dos meus sentimentos estão no recanto mais afetuoso de seu afetuoso coração solidário e solitário. Quanto encanto e desencanto reparti com seu desencanto e canto? Juvenal, juvenil, você é símbolo de toda minha desvairada juventude. Eu escrevi você É e não FOI. Por isso, você, na minha memória e no meu coração sempre será, até quando eu já não FOR.
Não sou, portanto, meu amigo, refratário ao seu desejo de contatar-me por qualquer motivo, de qualquer lugar, a qualquer momento. Jamais terei remordimentos saudosistas vindos de você, porque sei que me estima como sou e como sempre serei, exclusivamente, para minha memória e para minha alegria.
Quero, ainda, neste momento, agradecer-lhe, não apenas o DVD, mas, principalmente por causa da lembrança. Em mim você sempre terá com quem repartir seus anseios e desejos nos momentos vazios de nosso envelhecimento. Aos “amigos” que se escafederam, seu desprezo e sua indiferença. A mim e aos seus cães, sua saudade.
Estou enviando-lhe um livro despretensioso, onde presto homenagem àqueles a quem, em algum momento especial de suas vidas, dediquei algum poema ou alguma canção, como forma de solidariedade ou contentamento. São poemas e canções exclusivos - portanto, contextuais. Você será exceção, pois somente os homenageados receberam um exemplar. Foi uma forma de conseguir ficar, quando eu houver partido para a saudade. Espero que o leia com ternura, pois foi somente por ternura que escrevi e dediquei à minha família e a pessoas especiais em momentos especiais.
Juvenal, para encerrar, quero segredar-lhe que me apóio em duas pilastras neste final de vida: Paciência e Coragem. Paciência, para suportar, coragem, para enfrentar. Eu e a Gleiyde desejamos-lhe, com muito afeto e saudade, que nossas colunas possam sustentá-lo também.
Joaquim
Guará, 21 de junho de 2.007
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AS CINZAS DO MEU IRMÃO


Na vida cada um é cada um. Verdade que demoramos a aprender. Queremos que os outros sejam o que deles esperamos. Esse é o fundamento da grande batalha humana. Meu irmão Jayro acaba de falecer e escolheu na morte a mesma solidão que cultivou na vida. Pediu aos filhos que cremassem seu corpo, quem sabe para não compartilhar na morte das companhias que sempre recusou em vida. Era um solitário por índole.

Nunca conseguiu conviver com os pais, com os irmãos, com a mulher, nem com os filhos. Com os amigos, às vezes. É certo que não agia assim por maldade ou desídia. Apenas queria ser só. Viveu isolado de tudo e de todos. Passava anos sem aparecer. Deus sabe por onde andaria. Não tinha outros vícios senão o de ser sozinho. Nem por isso foi um ermitão ou um inútil. Apenas não se deixava estimar. As pessoas tinham por ele um respeito quase religioso pelo algo de messiânico que moldava sua conduta. Se fosse um pregador arrastaria multidões. Tinha carisma.

Plantou cafezais, cultivou pastagens, estudou a terra que sulcava reverente com as mãos e com as máquinas. Ao mesmo tempo era um ser primitivo e também um homem de conhecimentos. Sua solidão o levou sempre a preferir ser empregado que patrão. Não gostava de mandar no que fosse dele, porém mandava bem no que era dos outros. Por isso era requisitado. E dava conta do recado. Foi vereador mas não gostava de associar-se a ninguém, nem a nada. Não queria mais do que ser ele mesmo. Pensava como Ibsen que o homem só é o mais forte. Agia com retidão para não fazer concessões.

Não foi fraterno com seus pais, com os irmãos, com seus filhos nem consigo mesmo. Era coerente no seu voluntário isolamento. Viu a sorte escapar-lhe pelos dedos inúmeras vezes e a dor ocupar o abismo que as tragédias abrem em nossos corações. Um de seus filhos suicidou-se jovem ainda. Gesto que abriga um infinito de motivações e nenhuma definitiva. A verdade se vai com o ato tresloucado.

Nunca o vi chorar nem gargalhar. Apenas sorrir. Talvez não quisesse ficar refém da felicidade, nem exaurir-se em sua busca. Acredito, como irmão, que a alegria o incomodasse. A ventura é como uma iguaria saborosa que uma vez degustada nos faz escravos da culinária que a produziu porque queremos prová-la sempre outra vez. E sofremos quando a receita desanda.
Uma vez uma de suas filhas me disse “nem sei se tive um pai”. Tinha razão, porque também não tenho certeza de que foi meu irmão, tão separados vivemos sempre.

Morreu no seio de sua segunda família e pediu que cremassem seu corpo. Quis continuar só na morte sem deixar vestígios que fossem como pegadas que seguidas poderiam levar a ele. Não quis compartilhar de nenhum jazigo coletivo. Pediu que suas cinzas fossem espargidas num resto de floresta perto da qual consumiu seus últimos dias para voltar a reintegra-se à Natureza que sempre amou e de onde saiu um dia na forma humana que lhe deu nossa mãe que cada um de nós amou a seu jeito e ele ao seu. Nunca fez alarde do seu carinho que ela esperava reticente pedindo que compreendêssemos porque ele era assim... E assim era mesmo. Ele era o Jayro que uma vez viajou quilômetros para me levar ao cinema, o que não conseguiu, produzindo em mim a mais forte recordação que tenho dele. Recordação na forma de uma saudade que hoje, na velhice e na doença , me faz lembrar dele por algo que me quis fazer e não fez.
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O ÉBRIO - A HISTÓRIA DE UM FILME



Esperei aproximados 60 anos para ver O ÉBRIO, filme de grande sucesso do cantor Vicente Celestino. Dia destes, estava só em casa e indeciso coloquei a cópia no aparelho. Quase desisti. No átimo desse titubeio e no silêncio mágico daquele momento voltei sessenta anos atrás. Devia ser lá pelos anos quarenta. Apesar de ser uma produção do então desprestigiado cinema nacional, o filme era um estrondoso sucesso..

Eu andava pelos meus 14 anos e já era fã de cinema. Comprador assíduo da Cena Muda. A magia daquele mundo de sombras me seduzia. O grande empecilho era estar estudando como aluno interno no Colégio Salesiano de Tupã. Os padres não permitiam saídas, nem a poder de rezas. E o que se fazia muito nesse internato era rezar. Maliciosamente escrevi ao meu Irmão Jayro, por saber que ele era fã ardoroso da voz do Vicente Celestino, sugerindo que viesse ver o filme em Tupã, porque demoraria muito a ser levado em Osvaldo Cruz. Na verdade não era nele que eu estava pensando, mas em mim mesmo. Ele vir ver o filme ou eu sair do internato eram possibilidades remotas. As regras do internato eram monacais e percorrer aqueles 50 quilômetros para atender ao capricho de um irmão caçula era fazer uma viagem que incluía a necessidade de um pernoite em hotel, no mínimo. E meu irmão nunca fora dado a esses arroubos fraternais.

Mas surpresa!!! Depois do jantar, um bedel anunciou que eu tinha uma visita na portaria. Lá estava meu irmão em carne e osso. Magro como sempre foi, era mais osso do que carne. Ir ao cinema já era por si algo pecaminoso para os padres e, ter que me ausentar do internato, tornava a coisa mais proibitiva ainda. Não houve argumento que demovesse o severo Padre Diretor. Meu irmão foi ver o filme sozinho e eu, aniquilado, tomei o rumo do longo dormitório dos alunos internos. Depois do “Benedicamus Dominus”, as luzes se apagaram e o silêncio se fez pesado. Dormi frustradíssimo. Inaugurei nessa noite uma de minhas primeiras revoltas contra as injustiças humanas. O que custava, meu Deus?...

Perdi a minha primeira oportunidade de ver O EBRIO. Perderia outras tantas em alguns poucos relançamentos do filme. E o tempo foi passando. Sinto que desenvolvi uma certa resistência em ver esse filme. Talvez tenha sido o desencanto pela injustiça dos padres. Ou, talvez, um medo inconsciente que a qualidade do filme me decepcionasse de alguma forma. Um certo receio de voltar a sofrer por um motivo ultrapassado. Mas nunca de todo superado.

Vieram, depois, a tela panorâmica, o cinemascope, o cinerama, a terceira dimensão, a televisão, o videocassete, o DVD, e a mídia dominou o mundo. Em contrapartida acabaram-se os cinemas.... e O EBRIO permaneceu no limbo de minhas lembranças. O filme não tinha apelos para uma transposição em vídeo por ser um procedimento de alto custo. Mas como nem tudo na vida está perdido para sempre, um dia veio a merecer uma versão em videocassete disponível apenas para locadoras. E aconteceu mais uma vez minha recusa em recorrer ao aluguel para assisti-lo. Finalmente uma edição em DVD me venceu e comprei uma cópia.

Ver o filme que é bom, nada. Só agora uma conjunção de forças me levou a essa extrema decisão. Juro que vacilei. A solidão, o silêncio, o sereno lá fora... os cães em plácido repouso... Ninguém para fazer perguntas inoportunas. Nenhuma testemunha se ao final eu chorasse pela saudade daquele momento único como se fosse um corte na minha história tão vazia de significados.

Vi o filme, adivinhado as cenas que já conhecia de tantas reportagens sobre essa obra tabular do cinema brasileiro. Esperei com ansiedade o momento em que o personagem, devastado pela bebida, diria a frase tabular do melodrama: “Eu disse que perdoava, mas não disse que me reconciliava”. A sentença ficou tão famosa como o improvável “play it agaim, San” de CASABLANCA. Lembram-se? Os cinéfilos de carteirinha se lembrarão de uma coisa e de outra.

Chorei entristecido, menos pela história e mais por saber que todos aqueles atores, e mesmo um inadvertido cão que perpassa a cena estão todos mortos. Uns deixaram memória. A maioria não. Fiquei atento aos créditos. Encontrei poucos conhecidos. Excluídos os personagens principais, todos, todos mortos ou de destino ignorado.

Se gostei do filme? Não cabe aqui esta avaliação. Certamente não é bom. É uma relíquia. E de uma relíquia não se registra a beleza. Registra-se a evocação. No filme o ébrio da historia confessa que bebe para não se lembrar das dores sofridas, e nesse sortilégio só fez tornar imortal a canção e seu cantor que “na bebida busca esquecer”... Eu mesmo, naquele momento cumpria esse cruel vaticínio porque embora relutante por tanto tempo quis relembrá-lo numa noite em que sua voz deve ter ecoado pelo silêncio de minha vizinhança... Sessenta anos depois que meu irmão Jayro a ouviu num remoto cinema da cidade de Tupã... talvez tão só como eu nessa madrugada.

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LEMBRANÇAS DA CRISTINA

Cristina não saberá que me lembro dela. Lembro e muito. Cristina morreu faz anos. Era uma figura de mulher excepcional. Foi minha colega de trabalho no SESC. Sempre chegava atrasada para desespero de seus chefes e com aquele ar cansado de quem tinha ido dormir tarde.

Um dia chegou ao trabalho estremunha como sempre dizendo que eu me parecia com o Millor Fernandes com quem estivera numa boate entre amigos. Não me atrevi a perguntar por que viés do grande humorista se dava aquela parecença. Se dissesse que era pelo lado da fisionomia eu me sentiria um pouco frustrado. Hoje quando me vejo no espelho, tenho quase certeza que ela diria que a semelhança era pela cara mesmo. Nem sonhar que fosse pelo talento do humorista. Ou quem sabe, porque naquela época eu era bem metido a engraçadinho. Cristina era magnânima.

Não era mulher de rara beleza. Tinha, porém, aquele condão feminino de encantar as pessoas de espírito solerte. Longe de mim pensar que fosse um deles. Era incrível seu rol de amizades entre os artistas de todos os gêneros que pontificavam naquele inicio dos Anos de Chumbo, quando começava a se firmar o poder arbitrário dos militares aboletados no poder da nossa sempre vulnerável democracia. Essas lembranças me tomaram de assalto ao receber um e-mail do um antigo colega de trabalho que me precedeu na amizade com a Cristina e dela conservou também um punhado de boas lembranças. Revelou-me que quando a conheceu era namorada do cantor Caetano Zema então começando a ter sucesso na MPB daquela época. Parece que Zena não resistiu ao tempo... eclipsou-se nos calcanhares da fama.

Escapulindo aos deveres do serviço era delicioso ir tomar um cafezinho com a Cristina na esquina da São Luiz com a Praça da Biblioteca por onde trafegava a mocidade boemia e engajada daqueles dias. No átimo entre um café e outro sua companhia era sempre uma caixinha de surpresas. Seu visgo de mulher sedutora atraia sempre um desfile das celebridades emergentes naqueles meus dias deslumbramento com a grande cidade. Vinham ter com ela com a descontração das velhas amizades nomes ainda não tão famosos como Ronaldo Boscoli e Geraldo Vandré. Falavam de nomes ainda não tangidos pelas fímbrias da fama como Maysa, Tom Jobim, e Vinícius ou, então, das arbitrariedades dos militares. Algum amigo caído nas garras da repressão. Eram tempos que ainda não se combatiam com fuzis nem metralhadoras, mas com a letra das canções de protesto.

Cristina era íntima do pessoal da Bossa Nova com quem convivia em noites de vinho e de rosas para no dia seguinte “bater cartão” e encarar um trabalho de melancólica burocracia. Chegava mal dormida, porém nunca com a empáfia de sua intimidade com a fama.
Uma noite convidou-me para um gole no bar do Teatro Ruth Escobar onde levavam a peça Hair. Segredou-me que esperaria um namorado e não queria esperar sozinha. E o pior: talvez eu tivesse que voltar sozinho para a cidade. Tive. O namorado chegou para os mistérios da noite onde, certamente, não haveria lugar para mim. O namorado era o Nuno Leal Maia no fragor de sua exuberante mocidade.

Conheci dois dos maridos da Cristina, ambos de marcante atuação naquele pequeno mundo da intelectualidade paulistana dos anos sessenta. Um deles era o Massao Ono importante editor e animador cultural no mundo livreiro.Foi o primeiro a editar o meu amigo, poeta “beat-nick”, Roberto Piva. O outro foi Lúcio Kovarick professor da Usp. Visitei-a nesse dois casamentos ainda como seu colega de trabalho. Numa noite, no apartamento da rua Cesário Mota tive duas surpresas. A primeira foi a sopa de tomate feita em horas tardias pelo Carlos Alfredo e a segunda foi quando alta madrugada toca a campainha e chega Rogério Sganzerla já famoso com seu filme O Bandido da Luz Vermelha.

Cristina era assim, uma abelha mestra cercada de zangões da mais alta estirpe cultural daqueles dias em que a mocidade ia passando célere sem que percebêssemos as marcas que deixaria em nossas lembranças. A vida para nós ainda era conjugada no presente contínuo dos verbos.
Há pouco tempo lendo um livro de Mário Prata, lá encontro Cristina no rol de suas amizades mais indeléveis. Cristina não escrevia, mas estava em todos os lugares e produzia histórias. Mesmo sendo seu amigo bissexto vivi tantas com ela.

Um dia nossos caminhos se separaram. Ela deixou o SESC onde continuei e não soube mais de suas andanças. Vim a saber que seu pai era médico e que sua mãe se chamava Cleópatra – nome que detestava, com toda razão. A Cristina, sim, tinha algo da rainha do Egito que encantava os homens e destronava heróis da história. Cristina deve ter se destronado a si própria nas asas dos sonhos dourados que vivemos letárgicos na penumbra dos bares e no convívio com os anjos que trazem a beleza da arte e o delírio da vida no cortejo que seus vôos noturnos.

Soube muito vagamente que faleceu em Brasília vítima de um desses males que a gente mesmo inocula na carne como um avatar de suicídio involuntário e que nos exonera da vida. A tristeza? A bebida? A desesperança? Que vontade louca me deu de ver a Cristina... agora só no céu, se tivermos a sorte de ser escalados para essa viagem.
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OBTUARIES

“GOOD NIGHT, SWEET PRINCE, AND FLIGHTS OF ANGELS SING THEE TO THY REST”
Parece que vou me enveredar por um sendero funéreo. E vou mesmo. Pretendo, entretanto, pegar leve. Acontece que há alguns anos assino uma revista americana de cinema - dos tempos em que se era feliz e se morria em preto-e-branco - que traz um vasto obituário das pessoas ligadas ao cinema que faleceram aproximadamente no período de cada edição mensal. É morte para funerária nenhuma botar defeito. A revista se chama Classic Images e não é nenhum primor gráfico. Acostumei-me a ir direto a essas páginas para saber quem se foi desta vez e para sempre. Claro que os distintos defuntos mais famosos invadem os noticiários da “mídia” muito antes da revista vir a lume. Assim o necrológio da revista é meio requentado. Salvo no caso de nomes que lamberam a fama apenas de raspão, e outros que já se lambuzaram nela há muito tempo e hoje estão esquecidos. Mas a morte, muitas vezes, ´é que melhor explica a vida.

Não cultuo a morte a não ser a minha própria que vou adiando sempre que posso com a ajuda dos esculápios de plantão. Graças a eles, tão empertigados, com seus prateados estetoscópios no pescoço é que saltamos de uma média de 30 anos de vida para mais de setenta. Nem por isso os cemitérios com seus indefectíveis habitantes deixam de exercer um certo fascínio em mim. E de quebra a morte também.

Os cemitérios são a última morada de quem lá chegam, sem deixar de ser adoráveis pontos de atração turística, para aqueles que podem voltar, claro. Entre os mais visitados está o Pere-Lachaise de Paris, onde estão Chopin, Balzac, Abelardo e Eloísa, Edit Piaf, Oscar Wilde, Maria Callas e tantos outros nomes do nosso convívio cultural São um pouco nossos mortos também. Em Buenos Aires sempre se pergunta por La Ricoleta, onde está Evita Perón. No cemitério da Consolação estão a Marquesa de Santos, que faz milagres segundo alguns, e a atriz Iália Fausta. Cacilda Becker está no Araçá. Nossos mortos mais recentes, Ayrton Sena e Ellis Regina estão no Morumby... E la nave vá.

O cemitério de Hollywood tem o sugestivo nome de FOREVER. Equivalente, mais ou menos, ao nosso “Saudade” . Estive lá uma vez. Não vi tantos nomes famosos como esperava. Estes são mais numerosos na Calçada da Fama onde chegaram e saíram vivos. Muitos destes debandaram aos primeiros rugidos da velhice e foram morrer em outras plagas. Outros preferiram a cremação e suas cinzas vagueiam microscópicas pelas ondas do mar.

Impressionou-me, de dar um nó na garganta, a tumba de Tyrone Power. Quem viu seus filmes sabe que ele foi um homem despudoradamente bonito, porém, nunca fez pose de belo. Aceitou quase todos os papeis que lhe ofereceram. Tirou de letra a pecha de “galã” aplicado aos atores sem muito talento. Casou-se duas vezes. Teve filhos. Nunca se importou com os sussurros de que fosse homossexual. Flanava por sobre todas essas misérias humanas. Morreu ainda na maturidade sem chegar à velhice e trabalhando. Caiu em cena como se interpretasse o último papel de sua vida, tendo ao lado a bela Gina Lololobrigida. Por isso ganhou um epitáfio saído da pena de Shakespeare que ele não ousaria interpretar, mas que é um especial fotograma de sua alma. A sentença, que se lê no pórtico deste texto, está num inglês arcaico, e recomenda aos anjos esse memorável ator:

“BOA NOITE DOCE PRINCIPE E VOE ATÉ OS ANJOS QUE CANTAM PARA SEU REPOUSO”

- não é de chorar?
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MEU VIZINHO RAUL ROULIEN


Leio longa matéria de Ruy Castro, no Estadão, que me foi enviada pelo Flavio, amigo de Campinas. Conta a história do primeiro ator hollywoodiano brasileiro que pouca gente conhece: Raul Roulien. Eu também quero meter minha colherinha de café nessa história. Um verdadeiro golpe da sorte me fez dele um quase amigo. Ou, pelo menos, um dia, vertemos lágrimas uníssonas.


Sabedor de sua fama fugaz no cinema americano (para dizer pouco, participou do filme que lançou a dupla Fred Astaire e Ginger Rogers), lá por volta dos anos 35, do último século, tive curiosidade de saber se ele estava vivo ou morto e mais que isso por onde andaria. Empenhei-me até o limite iam minhas forças e meus relacionamentos. Pergunta daqui, pergunta dali e nada. Ninguém sabia onde estava e poucos quem fosse essa figura. O máximo que me diziam é que devia estar metido em propaganda e que eu pesquisasse junto as agências. Não me dei a esse trabalho e fiquei guardando a curiosidade enquanto comprava o quase nada que havia disponível sobre o ator. Aliás, cantor também. O melhor que consegui foram algumas fotos em revistas como Cinearte e Scena Muda bem antigas. Algumas delas com ele na capa. Consegui a duras penas um livreto do Museu Da Imagem e do Som com sua reduzida biografia. Já era alguma coisa. E a busca prosseguia.


Queria mais. Saber onde estaria essa fugidia efígie. Vivo? Morto? Faltou-me lembrar apenas de uma velha prédica de meu ex-chefe Amin Aur segundo a qual devemos “insistir no óbvio” em qualquer circunstância. Pois não me ocorreu a lista telefônica, logo ali, empoirada nos subterrâneos da mesinha de revistas da sala do apartamento. Pois bem: paga-se pela burrice. Precisei pesquisar o telefone de alguém com o sobrenome Rodrigues. E Rodrigues começa com “r-o” assim como Roulien. Não é que antes do Rodrigues, encontro o próprio Raul Roulien? Era de não se acreditar. Ali estava seu nome inteiro, em prosa e verso, e principalmente número do telefone, endereço com todos os efes e erres.
Podem me chamar de mentiroso que não reclamo ao bispo. E provo com escrituras, extratos bancários, conta de luz e outras formalidades. Eu morava na Rua Brasilio Machado n. 292 e o Raul Roulien no prédio em frente, num número ímpar como mandam os dispositivos municipais, não mais que 293 ou 297. Um pequeno edifício muito meu conhecido porque o achava bonitinho e cobiçava ter um apartamento nele. Mais que isso, seu zelador já havia ocupado o mesmo cargo no prédio em que eu morava. Tudo em casa. Claro que telefonei imediatamente. Atendeu-me sua terceira (ou seria outro o ordinal?) esposa . Era sabedor de seu segundo casamento com a então famosa na época Conchita Montenegro. Sabia ainda que uma tragédia se abateu sobre sua primeira mulher, morta atropelada por alguém não menos que John Huston sabidamente embriagado. Num rumoroso processo Roulien ganhou a causa indenizatória, mas perdeu as chances de continuar no cinema americano. Não gostaram da petulância daquele latinosinho nas barbas de Tio Sam. Mas isso são outras estórias.


Pelo telefone fui informado, gentilmente, que o meu inesperado achado estava muito mal, com esclerose avançada e não falava mais. Mas que se olhasse pela janela do meu apartamento o veria no portão do prédio tomando Sol, assistido por um enfermeiro. Perguntei se poderia chegar até ele e a gentil senhora concordou, achando que não conseguiria muita coisa. Mesmo assim muni-me das revistas que tinha com as fotos do ator, principalmente na capa, e desci correndo. O enfermeiro concordou sisudo com minha aproximação e ao ver as revistas com as fotos de seu assistido até que melhorou a cara.


Este não é um momento para se descrever com detalhes. Senti-me um pouco constrangido com meu gesto intempestivo. Ao mostra-lhe as fotos os olhos do Raul se acendiam como numa revelação e sem poder dizer nada chorava, chorava muito. Não resisti e chorei também. Delicadamente seus dedos trêmulos tocavam os botões de minha camisa o que me enternecia mais que minha resistência podia suportar. . Chorávamos ambos.


Voltei a vê-lo mais algumas vezes. Aproximava--me com cuidado. E antes das lágrimas me afastava. Claro que chorando assim mesmo. Um dia o zelador me parou na rua para dizer que “seo” Raul tinha morrido. E acrescentou que subindo ao apartamento para socorrer a viúva nas demandas da morte viu que havia muitas fotos de gente famosa com quem ele convivera no passado. Mal podia ele imaginar quanto.


O MAU PASSO DE INGRID BERGMAN

Há alguns anos gravei da TV o filme STROMBOLI que marcou a estréia da grande atriz Ingrid Bergman no cinema italiano, depois de ter abandonado estrepitosamente sua carreira em Hollywood. Esse detalhe não vem ao caso. Cada um casa com quem mais lhe apetece. E Ingrid deixou um casamento sereno para cair nos braços e um italianinho gordo, careca e (dizia-se) de muito talento, chamdo, todos sabem, Roberto Rosselini, na ´poca casado com outra grande estrela, essa italiana mesmo, Anna Magnani. Foi chumbo para todos os lados. As revistas de fofocas e outras nem tanto se esbaldaram. Logo depois do fim da 2ª. Grande Guerra o filme ROMA, CIDADE ABERTA, de Rosselini, abalou as estruturas do cinema americano pondo de lado o glamour dos estúdios e inundando as telas com o que se convencionou chamar de neo-realismo. Ou seja, uma nova maneira de mostrar a vida como ela é. Sem os maneirismos do cinema ameriano que, então, dominava o mundo Pegou.

Ingrid Bergman conta em sua biografia que ficou fascinada quando viu esse filme, levado despretensiosamente num cineminha de bairro de Los Angeles. Pensou logo que era seu dever de artista aderir a esse novo chamamento da arte cinematográfica. Enviou um telegrama ao diretor Rosselini onde dizia que se ele precisasse de uma atriz com sotaque sueco era só chamá-la que ela iria. Conta-se que quando o telegrama chegou ao seu destino, o escritório de Rosselini foi vitima de um pequeno incêndio e quase toda a papelada se perdeu. Como o destino escreve certo por linhas incertas, algum tempo depois o pequeno papelucho com a mensagem chegou ao conhecimento do diretor. Bem, resumindo a ópera tornaram-se amantes, casaram-se fizeram filmes e fizeram filhos. Hollywood perdeu sua grande estrela, bela, talentosa e fidelíssima esposa de um dentista que veio com ela de sua Suécia querida, quem sabe para reviver o mito de Greta Garbo. O que de certa forma reviveu.

STROMBOLI estava há anos na minha coleção do filmes gravados. Não sei bem, mas creio que por um certo desencanto com a atitude de Ingrid Bergman nunca tive vontade de ver o filme. Nem nos cinemas quando foi lançado aqui no Brasil, nem quanto passou na televisão. Já previa minha decepção. E não deu outra. O filme aqui para meus botões é uma droga. Não chega a lugar nenhum e tenta a todo tempo compor ângulos exploratórios com a rosto da ainda bela estrela, numa crassa imitação das belas fotografias americanas que sabiam como ninguém valorizar a beleza de suas estrelas.

Durante a evolução do pobre enredo de uma refugiada guerra (loira e sofisticada) que se casa por necessidade com um pescador italiano fiquei pensando no mau passo que deu Ingrid Bergman com essa mistura de amor e arte vindo a cair em dois sacos sem fundo: o próprio Rosselini e seu destino como atriz . Nenhum dos dois produziu outro sucesso igual àqueles que os fizeram amantes e esposos. Se o amor valeu a pena, então ta. Que belos filmes ainda teria feito ela se permanecesse nas mãos dos competentes e profissionais diretores americanos, bastando citar Hitchcock, entre tantos outros de igual quilate. Sua beleza continuaria sendo valorizada. Seu talento explorado, sua vida seguiria mansa e sem tropeças ao contrario do torvelinho em que se meteu nos braços do italiano gordinho e fazedor de filhos. Vendo Stromboli me ocorreu que no ano de seu lançamento surgiu aqui no Brasil a tentativa da Vera Cruz de fazer filmes com engenharia mais profissional. O primeiro filme dessa empresa, CAIÇARA foi, garanto, levemente inspirado em STROMBOLI, seja na história, seja em certas seqüências onde a ilha vulcânica da Itália e substituída pela natureza rude de uma ilha do litoral paulista na qual se passa o filme brasileiro. Ambos frutos do pacote pretensamente desmistificador do “realismo italiano” que noves fora teve lá seus méritos. Pelo menos sacudiu a arte de fazer cinema que nunca mais foi o mesmo.
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Nota. Tenho o filme Stromboli e de quebra Ciçara também. Se alguém quiser conferir esta e outras afirmações é só pedir. Meu “personal copietor” João terá prazer em enviar-lhes. Beijos.